É possível usucapir imóvel recebido de herança e dividido com outros herdeiros?

A usucapião por herdeiros permite regularizar a posse prolongada e exclusiva de imóveis herdados. Conheça os requisitos legais, desafios, benefícios e o que fazer para garantir ou evitar a usucapião do imóvel.
Usucapião por herdeiros - CRON

Existe a possibilidade de um herdeiro adquirir por usucapião um bem que antes era de seus pais e agora pertence a ele e seus irmãos? Seria uma usucapião familiar? Uma usucapião entre irmãos? É um caso de uma usucapião de uma herança?  Se apenas um dos herdeiros ficar usando o bem recebido de herança por um longo tempo, os demais herdeiros correm algum risco de perder sua parte neste mesmo bem?

Estas perguntas serão respondidas neste artigo, de forma a fazer um alerta para situações comuns na maioria das famílias que têm patrimônio e mais de um herdeiro.

Entenda como herdeiros podem usar a usucapião para regularizar a posse de imóveis herdados. Os requisitos legais, benefícios, desafios e como garantir ou evitar a usucapião por herdeiros de um imóvel.

O que é usucapião?

A usucapião (fala-se no gênero feminino) é uma ação que tem como finalidade a regularização formal do polo ativo do direito de propriedade, ou seja, quem ajuiza uma ação de usucapião pretende figurar como proprietário do imóvel, e tomar o lugar de outro sujeito que consta na matrícula do imóvel como titular do direito de propriedade.

Para tanto, terá que provar vários requisitos que foram detalhados em nosso artigo completo sobre usucapião.

Dentre os mais importantes, a posse com ânimo de dono, ou seja, com a vontade de tomar o lugar do proprietário registral na matrícula do imóvel. Além disso, o tempo, que é fator determinante e vai variar para cada tipo de usucapião. Não podemos esquecer que cada modalidade de usucapião demandará requisitos específicos e diferentes, o que um advogado especializado a partir de uma anamnese do caso, poderá identificar.

É possível haver usucapião por herdeiros? 

Com a prova dos requisitos da usucapião, e temos várias modalidades, o interessado caracterizado como possuidor com ânimo de dono, pode ajuizar a ação de usucapião cabível. Assim, uma pergunta sempre surge quando o assunto é inventário e/ou herança: um herdeiro pode usucapir a propriedade comum que divide com outro herdeiro?

É muito comum em famílias maiores um dos irmãos ficar cuidando dos pais e, mesmo após a morte destes, continuar no imóvel que servia de moradia, vivendo sozinho ou com sua família. Esta situação, se não for bem dimensionada, pode derivar em direitos específicos para este filho (herdeiro) que permanece com a posse (exclusiva) do bem após a morte dos seus genitores por um longo período de tempo.

Para nosso ordenamento jurídico, com o falecimento de uma pessoa transfere-se automaticamente para os sucessores a posse e a propriedade do patrimônio que esta pessoa tenha. O procedimento do inventário é o competente para regularizar esta transferência determinada por lei, e este pode ser judicial ou extrajudicial.

Assim, se há mais de um herdeiro, eles se tornam, a partir da morte de seus pais, compossuidores (posse comum) e condôminos (propriedade comum) de todos os bens que foram transferidos a partir do falecimento. E aqui está o ponto de nossa análise. A questão é saber se um desses dois herdeiros pode vir a ter direito de solicitar a usucapião da parte do seu irmão, do outro herdeiro.

Adiantando a resposta à pergunta central do nosso texto: sim, é possível a usucapião entre herdeiros. Vamos, então, entender como a usucapião por herdeiros pode acontecer – para quem quer obter a propriedade integral do bem – e como evitá-la – para aqueles que não querem perdê-la.

Diferença entre Usucapião por herdeiros de Usucapião familiar

Muitas pessoas confundem a usucapião familiar com a possibilidade de usucapir bem de um herdeiro que é seu co-proprietário, mas estas são duas modalidades distintas de usucapião.

A usucapião familiar ocorre a partir de pressupostos diferentes, pois o requisito básico é o abandono do lar por cônjuge que deveria prestar ajuda à família.

Dessa forma, a usucapião familiar se aplica em relação ao cônjuge que é proprietário do bem da família e pratica o abandono material, deixando para o outro cônjuge o dever de manutenção e cuidado dos filhos e do patrimônio comum. Este abandono, somado à passagem do tempo, 2 anos no caso, poderá dar ensejo à usucapião familiar. Dessa forma, não se confunde com a usucapião entre herdeiros.

Requisitos para usucapir um bem de herança

Para usucapir um bem que foi recebido por herança e está em condomínio, é importante, primeiramente, deixar bem claro que a pretensão é adquirir a parte do bem que está em propriedade de outro(s) herdeiro(s). Assim, será este herdeiro, que tecnicamente é seu condômino, o réu da ação de usucapião.

O principal requisito será a posse EXCLUSIVA do herdeiro/condômino que será o autor da ação de usucapião. Assim, precisamos saber o que é posse exclusiva.

Posse exclusiva é aquela que, além de se projetar faticamente sobre todo o bem a ser objeto da usucapião, exclui o(s) outro(s) herdeiro(s), que não exerce(m) os poderes de dono sobre o bem, ou sobre sua parte. Esta posse exclusiva, e com ânimo de dono, somado ao prazo da usucapião extraordinária do art. 1.238 do Código Civil (15 anos), terá o condão de propiciar sua aquisição originária da(s) parte(s) do(s) outro(s) herdeiro(s).

Usucapir um bem fruto de herança, nada mais é do que se tornar proprietário da parte que pertence a outro(s) herdeiro(s), desde que você prove que, a partir uma determinada data, após receberem o bem por herança, iniciou sua posse exclusiva e que esta se prolongou durante 15 anos, no mínimo, e sem qualquer oposição, ou seja, de forma mansa e pacífica.

A simples posse do bem basta para pleitear a usucapião?

Importante classificação se refere à posse exclusiva. Esta posse deve se estender sobre todo o bem a ser usucapido em contraposição à ausência de posse dos outros proprietários. Geralmente não há documento referente a esta posse, como um contrato de compra e venda entre os herdeiros.

Na maior parte das vezes esta posse se inicia de forma natural, pois um dos herdeiros apenas permaneceu no bem que antes era ocupado pelos pais, por exemplo. Com o tempo, passou a pagar sozinho os impostos, os custos de manutenção sobre todo o imóvel, e a ter uma ingerência, o poder de gestão sobre o bem, sem qualquer interferência dos demais proprietários. Aí está a posse exclusiva, que pode levar à usucapião por herdeiros.

Diferença entre posse e detenção

Detenção é uma posse degradada, ou seja, é o contato que uma pessoa tem com algum bem, mas sem os direitos do possuidor, como, por exemplo, de um dia poder pedir usucapião. Ela ocorre quando uma pessoa mantém a posse de um bem em nome de outra, seguindo as ordens e instruções dessa pessoa.

O caseiro de um sítio, chamado tecnicamente de “fâmulo da posse” (art. 1.198 do Código Civil), muitas das vezes terá uma relação de fato com o bem, com o sítio, maior do que o próprio proprietário. Ele pode morar no imóvel, cuidar e defender o bem sempre com mais presteza do que o próprio dono. No entanto, ele nunca poderá usucapir o bem, pois ele é um mero detentor.

Há uma outra forma de detenção muito peculiar às relações familiares, que são os atos de permissão e tolerância. Situações nas quais não há contrato, mas há uma situação, expressa ou não, de permissão de uso de um bem. Tecnicamente são casos de detenção, mas como não há contrato, não há uma prova clara de que não é posse, por exemplo.

Por que diferenciar posse de detenção é importante quando se trata da usucapião entre herdeiros? 

É muito comum que haja uma relação de parentesco entre herdeiros que são, também, co-proprietários. Assim, esta relação, muitas das vezes, está permeada por permissões, concessões de forma velada ou de forma expressa mas não escrita.

Os irmãos, por exemplo, podem respeitar a posse do outro irmão, mesmo este usando todo o imóvel recebido por herança. Os irmãos podem, ainda, tomar todas as decisões em conjunto e estas decisões serem executadas unicamente pelo irmão que exerce a posse do imóvel, em seu nome.

Estas hipóteses são de detenção, como falado acima, uma vez que há o contato direto com a coisa, com o bem, mas sem a intenção de dono, pois há um “respeito ao(s) verdadeiro(s) proprietário(s)/possuidor(es)”. Enquanto ficar assim, não há nenhum risco, pois o detentor não pode usucapir.

Para haver a usucapião por herdeiros, o autor deverá fazer a prova da posse, e esta tem que ser exclusiva. Dessa forma, quem for ajuizar a ação, se provar que sua atitude perante o bem ultrapassa a questão do respeito, da consciência de haver um verdadeiro proprietário/possuidor, somada à ausência de oposição, terá chance de êxito.

Saiba como usucapir um bem de herança

Usucapião extrajudicial

Para usucapir um bem, a forma extrajudicial pode ser utilizada para qualquer modalidade. A usucapião extrajudicial deverá observar o procedimento da confecção de atas notariais no cartório de notas e, após, a avaliação pelo registrador de toda a documentação.

As atas notariais farão as vezes do processo e o registrador (titular do cartório de registro de imóveis no qual o bem objeto da usucapião está registrado) de um juiz.

Todos os requisitos da modalidade de usucapião escolhida deverão ser provados para ter êxito, e o proprietário registral será intimado para se manifestar.

Usucapião judicial

A via judicial é a mais utilizada na usucapião por herdeiros, uma vez que a prova da posse exclusiva demanda um conjunto probatório mais extenso e detalhado.

A usucapião judicial inicia e termina na justiça e o juiz dará a sentença declarando a propriedade do autor, ou não. Em nosso artigo sobre usucapião, há um maior detalhamento sobre a documentação necessária que deve ser observada para a via judicial e extrajudicial.

Dúvidas comuns

Quando um filho tem direito à usucapião?

Um filho, ou uma pessoa que se torna proprietário por ter herdado um bem em conjunto com outro(s), torna-se legitimado para pedir a usucapião quando o seu condômino “abandona” o bem, ou sua parte neste bem. Não basta o abandono, é claro, deve haver, concomitantemente, o exercício da posse exclusiva, com ânimo de dono, sobre todo o bem. Somado este fato à passagem do tempo (15 anos), haverá uma grande chance de haver a usucapião.

Como evitar que um dos herdeiros peça usucapião de um bem de herança?

Uma das questões mais importantes não é saber quando se tem o direito de solicitar a usucapião de um bem herdado e dividido com outro(s) proprietário(s), e sim, saber como evitar. A melhor forma de impedir que haja a posse exclusiva, é a celebração de um negócio jurídico determinando que tipo de posse será exercida sobre o bem.

A dica é simples mas, muitas das vezes, de difícil aplicação, pois entre parentes – irmãos, por exemplo –, pode ser difícil exigir um documento escrito provando que não há posse sobre todo o bem. Contudo, é o melhor caminho e, por isso, apresentamos alguns tipos de contrato que, se celebrados entre os herdeiros, impedem a usucapião de imóvel de herança.

Por exemplo, um contrato de comodato (empréstimo gratuito) deixaria claro que mesmo utilizando o bem sozinho, e mesmo que haja posse, esta foi criada pela existência de um contrato. Isso muda tudo, pois houve o desdobramento da posse (artigo 1.197 do Código Civil), criando uma posse direta (que está em contato com o bem) e especificando que seu ânimo nunca será de dono, mas de comodatário, o que impossibilita a usucapião.

Pode ser, também, celebrado contrato de aluguel, arrendamento, ou documento escrito por ambas as partes configurando a forma e a autorização para um dos co-proprietário usar o imóvel sozinho. Se isso não for feito, e é mais comum entre bens que são recebidos de herança, entre irmãos, o risco se torna claro de haver posse exclusiva e, assim, ser pedida a usucapião da parte dos outros condôminos – a usucapião entre irmãos.

Quem tem direito de morar no imóvel de herança?

Qualquer um dos herdeiros/condôminos pode morar no imóvel que foi recebido por herança. Se esta moradia for consensual, o melhor é ter um documento que regularize este fato, como falado acima. Se não for de forma consensual, esta moradia deve ser questionada para evitar a usucapião por herdeiros.

O herdeiro/condômino deve procurar um advogado especialista, pois há várias formas de constranger este herdeiro e tornar esta posse litigiosa. Desde a fixação de aluguel, passando pelas ações possessórias ou até a extinção de condomínio, qualquer atitude deve ser tomada. O que não se pode fazer é deixar a situação se prolongar pelo tempo sem a justa e correta oposição.

Quais os direitos de um herdeiro que permanece na posse do imóvel de herança?

O herdeiro/condômino que permanece na posse do imóvel comum, com o passar do tempo, começa a ter a seu favor a posse exclusiva. E esta posse, como vimos, poderá dar ensejo à usucapião futura do bem.

É possível pedir usucapião de imóvel em inventário?

O imóvel que ainda se encontra em inventário com trâmite na justiça não gera direito à usucapião. Neste caso, ficará difícil a um dos herdeiros, ainda que esteja na posse do bem, sustentar que sua posse é exclusiva e com ânimo de dono, pois há uma discussão sobre o patrimônio que ainda não findou.

Conclusão

A usucapião por herdeiros é possível. Fruto da desídia dos herdeiros, agora proprietários e condôminos, a posse exclusiva de um deles sobre todo o bem prorrogada no tempo de forma mansa e pacífica, pode dar ensejo à usucapião. Assim, o mesmo raciocínio à usucapião de bem em condomínio, ainda que não adquirido por herança.

A orientação para as partes é deixar claro a justificativa para a “posse exclusiva” de um dos herdeiros/condôminos, buscando desqualificar a posse como não sendo uma posse com ânimo de dono. O alerta é válido para a maior parte das famílias que herdaram patrimônio e ficaram com receio de ferir sentimentos dos irmãos ao exigir a celebração de um negócio jurídico que dará segurança a todos os envolvidos, como um contrato de comodato, arrendamento ou locação, por exemplo.

E, se esta situação já está presente, procure um advogado especialista para saber como criar uma justa e devida oposição para que evite o transcurso do prazo e para que obste a posse exclusiva.

Se você tem dúvidas ou precisa de orientação sobre esse tema ou gostaria de conhecer melhor os nossos serviços, entre em contato conosco.

Caso tenha gostado do conteúdo, acompanhe as nossas redes sociais (Instagram e LinkedIn) e fique por dentro de todas as novidades do nosso escritório.

Marcelo Camara - CRON
Marcelo Camara
Sócio | marcelo@cron.adv.br | + posts

Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor de Direitos Reais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Compartilhar:

Posts Recentes

Envie-nos uma mensagem