Direito Digital: desafios e transformações na Era da Virada Tecnológica do Direito

O Direito Digital surge como uma resposta às novas circunstâncias trazidas pelo ambiente digital, ressignificando institutos já existentes em outras áreas do Direito, ou seja, trata-se de uma normatização interdisciplinar das diversas áreas já existentes dentro da nova realidade digital.
Direito digital - CRON

A consolidação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e a consequente digitalização de atividades cotidianas propiciaram a ocorrência de situações jurídicas outrora impensáveis.

A partir da transformação digital iniciada pela Quarta Revolução Industrial, as barreiras entre o meio ambiente físico e o meio ambiente digital gradativamente tornaram-se mais tênues, o que impactou a sociedade civil organizada como um todo, desde as relações sociais até a própria forma de agir e pensar na sociedade 4.0.

Nesse contexto, o Direito Digital surge como uma resposta jurídica às novas circunstâncias trazidas pelo ambiente digital, ressignificando institutos já existentes em outras áreas do Direito, ou seja, trata-se de uma normatização interdisciplinar das diversas áreas já existentes dentro da nova realidade digital.

O que é Direito Digital?

Em síntese, o Direito Digital pode ser definido como o conjunto de normas que regem as relações jurídicas no ambiente digital. Patricia Peck define o Direito Digital como:

“[…] a junção de normas de autorregulamentação que atendam ao novo cenário de interação social não presencial, interativo e em tempo real. O Direito Digital é, portanto, a evolução do próprio Direito, para atender às mudanças de comportamento e às necessidades de novos controles de conduta gerados pelo uso da Tecnologia.” [1]

Dessa forma, não se trata de uma nova área do Direito, mas, tão somente, de uma ressignificação necessária frente às mudanças ocasionadas pela tecnologia. O Direito Digital pode incorporar normas de outros ramos do Direito (Civil, Penal, Internacional, Tributário, Financeiro entre outros) para se adequar à nova realidade digital. 

Com o crescimento da Internet e a transformação digital das relações humanas, novas questões jurídicas emergem, exigindo que o Direito acompanhe essas mudanças e ofereça soluções adequadas. Cita-se, por exemplo, as mudanças paradigmáticas ocasionadas pela tecnologia da blockchain e pelos smart contracts, a ascensão das criptomoedas, a Internet das Coisas (IoT) e a aplicação da Inteligência Artificial em diversas áreas.

A partir dessa interdisciplinaridade, o Direito Digital surge como alternativa para ressignificar e criar normas que garantam os direitos dos indivíduos no meio ambiente digital.

Direito Digital na Reforma do Código Civil

No dia 17 de abril de 2024, o Senado recebeu de forma oficial o Anteprojeto de reforma do Código Civil que, dentre outros Livros, contou com o Livro de Direito Civil Digital, do qual o nosso sócio Dierle Nunes integrou a Subcomissão que discutiu a inserção de temas atinentes ao Direito Digital no Código Civil.

Como apresentado na exposição de motivos do Anteprojeto, a justificativa da inserção do Direito Civil Digital como livro autônomo deu-se justamente pelo fato de relações e situações jurídicas digitais já estarem intrínsecas ao cotidiano do brasileiro, “em face da evidente virada tecnológica do direito, de modo a agregar inúmeras interações de institutos tradicionais e de novos institutos, relações e situações jurídicas neste ambiente digital”.

Organizado em 10 (dez) capítulos, a Subcomissão responsável estruturou o Livro de Direito Civil Digital da seguinte maneira:

  • Capítulo I (Disposições Gerais): estabelece as bases do Direito Civil Digital, focado na proteção da dignidade, privacidade e propriedade no ambiente digital;
  • Capítulo II (Da Pessoa no Ambiente Digital): trata dos direitos de pessoas naturais e jurídicas, como liberdade de expressão, direitos da personalidade, inclusive os neurodireitos, e responsabilidade civil;
  • Capítulo III (Das Situações Jurídicas no Ambiente Digital): define o que são situações jurídicas digitais e como devem ser regulamentadas;
  • Capítulo IV (Do Direito ao Ambiente Digital Transparente e Seguro): garante um ambiente digital seguro, com regras para moderação de conteúdo. Com inspiração no Digital Services Act da União Europeia, busca-se a criação de um ecossistema integrado de regulação eficiente do mercado digital, estimulando padrões de compliance e posturas diligentes de usuários e das plataformas. Caso aprovado, esse Capítulo revogará o art. 19, do Marco Civil da Internet;
  • Capítulo V (Patrimônio Digital): detalha a gestão e a transmissão hereditária de ativos digitais, a denominada herança digital;
  • Capítulo VI (A Presença e a Identidade de Crianças e Adolescentes no Ambiente Digital): estabelece medidas para a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital;
  • Capítulo VII (Inteligência Artificial): define diretrizes para o uso de IA, com enfâse na não discriminação, a transparência, garantia de direitos fundamentais e na responsabilidade civil;
  • Capítulo VIII (Da Celebração de Contratos por Meios Digitais): aborda a validade dos contratos digitais;
  • Capítulo IX (Assinaturas Eletrônicas): estabelece as modalidades e os requisitos para a validade de assinaturas eletrônicas em documentos jurídicos;
  • Capítulo X (Atos Notariais Eletrônicos – E-notariado): normatiza os atos notariais eletrônicos, por meio do e-notariado, assegurando precipuamente autenticidade, integridade e confidencialidade desses atos.

Portanto, a inserção do Livro de Direito Civil Digital busca adequar a legislação à realidade digital, de modo a garantir proteção, transparência e segurança nas interações digitais, bem como promover a inovação e proteger direitos fundamentais no ambiente digital.

Evolução do Direito Digital

Muito embora, caso aprovado, o Livro de Direito Civil Digital desempenhe o papel de base do Direito Digital pátrio, há a presença de temas digitais em diversas regulamentações, que merecem ser citadas:

Lei do Software (Lei nº 9.609/1998) e Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998):

Diplomas que conferem proteção à propriedade intelectual e aos direitos autorais. Todavia, vigentes há mais de 20 (vinte) anos, contam com diversos dispositivos obsoletos;

Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012):

Alterou o Código Penal para tipificar a invasão de dispositivos informáticos para obtenção de dados, iniciando a discussão sobre a necessidade de regulamentação de crimes cibernéticos no Brasil;

Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014):

Estabelece princípios, garantias e direitos para o uso da Internet no Brasil. Contudo, editado em época de frenesi em relação à Internet, possui diversos dispositivos obsoletos que não mais refletem a Internet de hoje, em especial o art. 19 e institutos sobre a neutralidade de rede;

Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018):

Inspirado no General Data Protection Regulation, é um marco fundamental na proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado;

Lei do Stalking (Lei nº 14.132/2021):

Alterou o Código Penal para tipificar o crime de perseguição, o denominado stalking: “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.

Combate ao Bullying e Cyberbullying (Lei nº 14.811/24): 

Recentemente sancionada, visa a coibir práticas de bullying no ambiente digital, introduzindo novas medidas punitivas e de prevenção às crianças e adolescentes.

Além de dispositivos nacionais, há importantes disposições internacionais relacionadas ao Direito Digital, como, por exemplo:

  • O General Data Protection Regulation (GDPR) da União Europeia, que inspirou a LGPD brasileira;
  • A tríade formada pelo DSA, DMA e DGA: o Digital Services Act (DSA), uma emenda à Diretiva sobre o Comércio Eletrônico/2000, também da União Europeia, estabelece requisitos de diligência aos prestadores de serviços intermediários na internet no tocante à moderação de conteúdo ilícito e desinformação, dentre outros riscos; o Digital Markets Act (DMA), legislação da União Europeia visa a regular as grandes plataformas digitais e empresas de tecnologia para garantir um mercado digital mais justo e competitivo e o Data Governance Act (DGA), legislação que busca o fomento ao compartilhamento seguro de dados dentro da União Europeia, facilitando o acesso e a troca de dados entre empresas, governos, organizações e cidadãos; e
  • O EU IA Act, o Regulamento sobre IA que estabelece diretrizes acerca do uso, desenvolvimento e implantação de sistemas de inteligência artificial (IA) no âmbito da União Europeia.

Advocacia digital: o que faz um advogado Digital?

O Direito Digital abrange uma série de questões que surgem com o uso da tecnologia e a consequente digitalização da vida, o que exige que o advogado atuante na área acompanhe as mudanças relacionadas ao meio ambiente digital.

Algumas das áreas mais importantes de atuação do advogado Digital incluem:

Proteção de Dados e Privacidade:

Prestar assessoria a empresas e indivíduos com a finalidade de garantir uma atividade de tratamento de dados adequada, transparente e segura; auxiliar empresas na criação de políticas de segurança da informação, que buscam prevenir incidentes de segurança (como vazamento de dados ou acessos não autorizados) e orientar sobre como implementar standards de conduta que estejam em conformidade com a legislação vigente dentro de parâmetros éticos;

Inovação e direitos autorais:

Auxiliar pessoas naturais e jurídicas a registrar criações intelectuais, patentes e invenções, bem como atuar em lides envolvendo a violação desses direitos;

Contratos digitais:

O advogado digital pode elaborar e revisar contratos relacionados à tecnologia, como contratos de software, termos de uso de sites e aplicativos, smart contracts (contratos digitais), além de licenças de uso de propriedade intelectual em plataformas digitais;

Herança digital e planejamento sucessório de criptoativos:

O advogado digital pode auxiliar os indivíduos que queiram, mediante testamento, transmitir seus ativos digitais aos seus herdeiros, por exemplo. O planejamento sucessório de criptoativos é uma tarefa complexa que requer preparação cuidadosa e atenção aos detalhes, por isso é indispensável a presença de um advogado.

Perspectivas futuras e desafios da regulação

Um dos principais desafios do Direito Digital e do advogado especializado em Direito Digital é a constante evolução tecnológica, que exige uma adaptação contínua das normas jurídicas. É fato que o ritmo das inovações tecnológicas, não raro, supera a velocidade da criação e da adaptação das leis, o que exige constantes estudos sobre a temática.

Além disso, possível citar desafios como: 

Conclusão

À vista do exposto, o indivíduo contemporâneo deve ser levado a tratar os temas digitais com a devida importância, de modo que não há espaço para tratar o meio ambiente digital apenas como outro domínio com competências próprias.[2] Paulatinamente, as barreiras entre o “ambiente físico” e o “ambiente digital” parecem se esfacelar, o que implica a leitura da realidade sob uma ótica de interconexão entre tais ambientes.

O Direito Digital é uma área em plena expansão e que se torna cada vez mais relevante na sociedade atual. Com o avanço das tecnologias, novas questões jurídicas surgem e demandam regulamentações específicas para proteger os direitos digitais de pessoas físicas e jurídicas no ambiente digital. O advogado que atua nessa área precisa estar em constante atualização para lidar com os desafios de um mundo cada vez mais conectado e dinâmico.

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[1] PECK, Patricia. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.

[2] MOROZOV, Evgeny. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 135.

Mathaus Miranda - CRON
Mathaus Miranda Maciel
Advogado | mathaus@cron.adv.br | + posts

Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

Membro do Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia (DTec) da UFMG. Pós-graduando em Direito Privado, Tecnologia e Inovação pela EBRADI/SP. Foi membro do Grupo de iniciação Científica “Responsabilidade Civil: desafios e perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea” pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

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