Reforma do Código Civil e a herança digital

Saiba como a reforma do Código Civil aborda a herança digital, garantindo a proteção dos direitos de personalidade dos sujeitos envolvidos, a transmissão de bens digitais e o direito à privacidade de terceiros.
Herança digital - CRON

Já pensou no que ocorre com as redes sociais de um indivíduo quando ele falece? O acesso às suas redes sociais seria transmitido aos seus herdeiros? Com todas as mensagens inbox e conteúdos potencialmente privados?

Nos últimos anos, o conceito de herança digital ganhou destaque. O aumento da presença online e a crescente digitalização de bens patrimoniais e pessoais levantam interessantes questões sobre a sucessão digital.

É fato que hoje há uma (con)fusão entre o ambiente digital e o ambiente real, de modo que já se visualiza uma virada tecnológica no campo do Direito, sendo necessário revisitar diversos institutos jurídicos, inclusive o Direito das Sucessões.

Vamos explorar o que é herança digital e como a Subcomissão de Direito Digital para a reforma do Código Civil – da qual o nosso sócio Dierle Nunes, um dos coautores fez parte – se posicionou sobre o tema.

O que é herança digital?

Como definido pela Subcomissão de Direito Digital, a herança digital é a transmissão do conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencentes a um indivíduo ou entidade, existentes em formato digital (como, por exemplo, as criptomoedas, milhas aéreas, livros e músicas digitais), deixado após a morte.

A herança digital contemplaria, em tese, duas categorias principais de bens digitais: bens digitais patrimoniais e bens digitais personalíssimos.

Contudo, é importante explicar que no ordenamento jurídico brasileiro são transmitidas aos herdeiros apenas as relações jurídicas patrimoniais, ou seja, bens dotados de valor econômico.

A reforma em nada altera essa regra, pois a herança digital nada mais é do que a transmissão aos herdeiros do patrimônio digital do falecido, com algumas exceções, que veremos adiante.

O que é um bem digital patrimonial?

Esses bens têm valor econômico e podem ser transmitidos aos herdeiros sem maiores discussões. Exemplos incluem:

  • Criptomoedas: Bitcoin, Ethereum, e outras moedas digitais;
  • Milhas aéreas: pontos acumulados em programas de fidelidade de companhias aéreas;
  • E-books e músicas digitais: livros e músicas comprados e armazenados em formato digital;
  • Domínios de internet: endereços de sites registrados;
  • Contas em plataformas de comércio eletrônico: saldos ou ativos digitais em contas como PayPal, Amazon etc.

O que é um bem digital personalíssimo?

A discussão principal se dá em relação à sucessão digital de bens digitais pessoais, ou personalíssimos, como:

  • Perfis em redes sociais: contas no Facebook, Instagram, Twitter etc;
  • E-mails pessoais: contas de e-mail com correspondências privadas;
  • Postagens de vídeos e fotos: conteúdos pessoais postados em plataformas como YouTube e redes sociais;
  • Opiniões e comentários pessoais: postagens em blogs, fóruns e redes sociais;
  • Mensagens privadas: conversas em aplicativos de mensagens como WhatsApp e Messenger.

Você gostaria que sua conta no Instagram, por exemplo, fosse transmitida aos seus herdeiros quando do seu falecimento?

Como a reforma do Código Civil trata sobre a herança de bens digitais existenciais?

A herança de bens digitais já foi objeto de diversos projetos de lei no país, que contudo, não obtiveram êxito. Além disso, as decisões de Tribunais pátrios ainda permanecem conflitantes entre a transmissibilidade ou não desses bens digitais pessoais.

Com o intuito de solucionar a problemática, o entendimento adotado na reforma do Código Civil foi pela intransmissibilidade, a princípio, dos bens personalíssimos, uma vez que: 

  1. Não possuem conteúdo economicamente aferível; e 
  2. A transferência geraria quebras de privacidade e de intimidade – inclusive de terceiros alheios à relação de sucessão – capazes de ocasionar grandes embaraços.

Assim, mantém-se a transferência do patrimônio digital e a prevalência do direito de privacidade dos vários sujeitos envolvidos em eventual transmissão de tais bens.

Permissão de acesso por testamento

Ao longo do capítulo reservado à herança digital, é prevista a possibilidade de que o autor da herança disponha em testamento sobre os dados e as informações contidas em qualquer aplicação de Internet, bem como das senhas e códigos de acesso.

As mensagens privadas do falecido armazenadas em ambiente virtual não poderão ser acessadas pelos herdeiros em qualquer das categorias de bens digitais, exceto se houver expressa disposição de última vontade nesse sentido, e se preservada a intimidade de terceiros.

Permissão de acesso por decisão judicial

Não havendo disposição em testamento, ficará permitido o acesso pelos herdeiros às mensagens privadas da conta do falecido, desde que por decisão judicial e comprovada a sua necessidade, para os fins exclusivos autorizados pela sentença e resguardando o direito à intimidade e a privacidade de terceiros.

Pense no famoso caso envolvendo herança digital ocorrido na Alemanha, no qual se autorizou o acesso dos pais à conta do Facebook da filha para apurar se o falecimento decorreu ou não de suicídio. Caso a situação ocorresse no Brasil, a rede social seria transmitida pela presença de justo motivo.

Exclusão da conta ou conversão em memorial

Ainda, se não houver declaração de vontade do titular da conta digital, ficará autorizado que os sucessores, se desejarem, requeiram a exclusão da conta ou sua conversão em memorial, o que rechaça o argumento de que a intransmissibilidade de bens personalíssimos tornaria as plataformas digitais herdeiras universais dos bens digitais deixados pelo falecido. O Facebook e o Instagram, em seus respectivos Termos de Uso, já autorizam a exclusão da conta ou a conversão em memoriais.

Finalmente, caso não haja herdeiros ou representantes legais do falecido, as contas públicas de usuários brasileiros falecidos serão excluídas no prazo de 180 dias da comprovação do óbito.

Em síntese, a Reforma prevê a transmissão: 

  • Dos bens digitais com conteúdo econômico; e, 
  • Dos bens digitais pessoais em relação aos quais o falecido manifestou vontade de que sejam transferidos, ressalvados os interesses de terceiros.

Instrumentos de proteção do patrimônio digital

Existem formas de proteger e planejar a sucessão dos bens digitais, tais como a utilização de testamentos e do instituto do planejamento sucessório.

Com a utilização de um testamento, por exemplo, poderiam ser incluídas disposições específicas sobre o destino das contas nas redes sociais do falecido ou ainda determinar quem teria acesso às contas e aos arquivos após sua morte.

Já o planejamento sucessório, que engloba também a utilização do testamento, permitiria que o titular organizasse previamente a distribuição de seus bens digitais patrimoniais, evitando conflitos futuros. Para exemplificar uma situação, poderia haver o arranjo de qual herdeiro ficaria com as criptomoedas do falecido.

Conclusão

A herança digital é um tema complexo e atual, que requer a atenção e a regulamentação adequadas.

Parece evidente, portanto, a importância de regulação sobre a matéria, como sugerido no anteprojeto de reforma do Código Civil, principalmente para impedir a transmissão irrestrita de bens digitais pessoais sem que tenha sido autorizado pelo titular, sob pena de violação ao direito à privacidade do próprio titular e de terceiros.

Se você tem dúvidas ou precisa de orientação sobre herança digital e Direito Sucessório, entre em contato conosco. Caso tenha gostado do nosso conteúdo, por favor, avalie-nos no Google. Sua opinião é extremamente valiosa para nós!

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Confira o artigo completo escrito por nosso sócio, Dierle Nunes, em conjunto com os advogados Mathaus Miranda e Vitória Capute, no portal Consultor Jurídico.

Dierle Nunes - CRON
Dierle Nunes
Sócio | dierle@cron.adv.br | + posts

Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (Itália); mestre em Direito pela PUC Minas e professor adjunto na UFMG e PUC Minas. Integrou a Comissão de Juristas que assessorou a elaboração do Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados (2015) e a Subcomissão de Direito Digital da Reforma do Código Civil (2024).

Mathaus Miranda - CRON
Mathaus Miranda Maciel
Advogado | mathaus@cron.adv.br | + posts

Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

Membro do Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia (DTec) da UFMG. Pós-graduando em Direito Privado, Tecnologia e Inovação pela EBRADI/SP. Foi membro do Grupo de iniciação Científica “Responsabilidade Civil: desafios e perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea” pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

Vitória Capute - CRON
Vitória Capute
Advogada | vitoria@cron.adv.br

Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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