Direito real de habitação: proteção à moradia, requisitos e impactos na sucessão

O direito real de habitação garante moradia ao cônjuge/companheiro sobrevivente, sendo vitalício e personalíssimo. Ele impacta a partilha de bens, impedindo a venda pelos herdeiros e a cobrança de aluguel.
Direito real de habitação - CRON

O direito à moradia, fundamental e social, encontra respaldo em diversas esferas do ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no artigo 6º da Constituição Federal. Dentro do contexto do direito sucessório, o direito real de habitação surge como um importante instrumento de proteção ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, assegurando a ele a permanência no lar que antes dividia com o falecido.

No entanto, o direito real de habitação não é absoluto. A jurisprudência tem reconhecido hipóteses em que esse direito pode ser mitigado, especialmente quando não cumpre sua função social ou gera desequilíbrios excessivos entre os sucessores. Seu impacto na partilha de bens é significativo, pois pode limitar o uso e a disposição do imóvel pelos herdeiros. Nessa perspectiva, o instituto também revela um potencial estratégico, pois pode servir como ponto de negociação entre o cônjuge sobrevivente e os herdeiros, viabilizando acordos mais céleres e equilibrados no processo de inventário.

Este artigo propõe-se a explorar os aspectos conceituais, os requisitos para sua concessão, suas distinções em relação a outros institutos, seus impactos no processo de inventário e partilha de bens, e as nuances da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema.

O que é o direito real de habitação?

O direito real de habitação, direito real sobre coisa alheia, é o uso que consiste no direito de habitar gratuitamente em casa alheia, não podendo alugar, nem emprestar, mas, simplesmente, ocupá-la (artigo 1.414 do Código Civil Brasileiro). Também está previsto no artigo 1.831 do Código Civil Brasileiro para o cônjuge e, extensível ao companheiro (parágrafo único do artigo 7º da Lei 9.278/96), confere ao cônjuge ou companheiro sobrevivente o direito de permanecer residindo no imóvel que servia de residência da família, gratuitamente, após o falecimento do outro. Trata-se de um direito real de uso sobre coisa alheia, com finalidade social, que visa a garantir a dignidade e a manutenção do padrão de vida do supérstite.

Quando o beneficiário é o cônjuge sobrevivente, este direito não precisa de registro no Cartório de Registro de Imóveis para sua constituição e oponibilidade. Ele surge automaticamente com o falecimento do cônjuge ou companheiro, independentemente de qualquer formalidade. Sua oponibilidade erga omnes decorre da própria lei, sendo que a posse do imóvel pelo beneficiário já o torna público.

Requisitos para concessão para o caso do cônjuge sobrevivente

Para que o direito real de habitação seja reconhecido, alguns requisitos devem ser observados:

  • Único imóvel destinado à residência da família: o direito de habitação recai exclusivamente sobre o imóvel que servia de última residência do casal. Não se aplica a imóveis de veraneio, investimento ou outros bens. A existência de outros imóveis no patrimônio do falecido ou do cônjuge/companheiro sobrevivente não impede o reconhecimento do direito, desde que o imóvel em questão seja o único utilizado como moradia familiar.
  • Ausência de propriedade de outros imóveis pelo cônjuge/companheiro sobrevivente: embora a lei não exija expressamente que o cônjuge ou companheiro sobrevivente não possua outros imóveis, a jurisprudência tem consolidado o entendimento de que a existência de outros imóveis próprios, que possam ser utilizados como moradia, pode mitigar ou afastar o direito real de habitação, em certos casos, sob o fundamento da ausência de necessidade.
  • Condições específicas para união estável: o direito real de habitação, inicialmente previsto apenas para o cônjuge, foi estendido ao companheiro com base no artigo 7º da Lei 9.278/96, que equipara o companheiro ao cônjuge para fins de direito real de habitação.

Quando se perde o direito real de habitação?

A perda do direito real de habitação pode ocorrer em algumas situações:

  • Renúncia expressa: embora seja um direito assegurado por lei, o cônjuge ou companheiro sobrevivente pode, voluntariamente, renunciar ao direito real de habitação. Essa renúncia deve ser feita de forma expressa, seja por escritura pública ou nos autos do inventário. É importante notar que a renúncia ao direito de habitação não implica, necessariamente, na renúncia à participação na herança.
  • Desvio da finalidade residencial: o direito real de habitação existe para garantir a moradia do sobrevivente. Se o imóvel deixar de ser utilizado como residência da família, por exemplo, se for alugado para terceiros ou utilizado para fins comerciais, o direito pode ser extinto.
  • Aquisição de outro imóvel residencial de natureza similar: embora a lei não seja explícita sobre este ponto, a jurisprudência já discutiu a possibilidade de o direito ser mitigado ou extinto se o cônjuge sobrevivente adquirir outro imóvel que atenda às suas necessidades de moradia, especialmente se o imóvel em questão for o único bem a ser inventariado e houver outros herdeiros que necessitem da sua parte da herança. No entanto, essa é uma discussão complexa e depende da análise de cada caso concreto.
  • Copropriedade anterior ao óbito: se o imóvel já era de copropriedade (pertencia a mais de uma pessoa) com terceiro(s) antes do falecimento do cônjuge/companheiro (por exemplo, o imóvel pertencia ao falecido e a um irmão), o direito real de habitação pode não se configurar, pois o objetivo é proteger o imóvel que era residência da família.
  • Não ser o único imóvel residencial: o artigo 1.831 do Código Civil estabelece que o direito se aplica ao imóvel “desde que seja o único daquela natureza a inventariar”. Isso significa que se o falecido deixou outros imóveis residenciais, ou se o cônjuge sobrevivente já possuía outro imóvel residencial, o direito real de habitação pode não se aplicar ao imóvel específico que servia de residência familiar.

Pontos importantes a considerar:

  • Novo casamento ou união estável: no Código Civil de 1916, o direito real de habitação era perdido se o cônjuge sobrevivente casasse novamente ou constituísse união estável. No entanto, o Código Civil de 2002 não mantém essa causa de extinção, e o entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é que o novo casamento ou união estável não extingue o direito real de habitação.
  • Natureza do direito: o direito real de habitação é um direito vitalício (dura enquanto o cônjuge viver) e personalíssimo (não pode ser transferido).
  • Mitigação do direito: em alguns casos, a jurisprudência tem admitido a mitigação do direito real de habitação quando sua manutenção for excessivamente onerosa ou não atender à sua finalidade social. Isso ocorre, por exemplo, se o cônjuge sobrevivente tiver recursos financeiros suficientes para morar em outro local e a manutenção do direito de habitação inviabilizar a partilha dos bens para os demais herdeiros. No entanto, essa é uma exceção e depende de análise judicial.

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Diferença entre direito real de habitação e usufruto

Embora ambos sejam direitos reais sobre coisa alheia, o direito real de habitação e o usufruto possuem distinções significativas:

  • Finalidade: o usufruto (art. 1.390 e ss. do CC/02) confere ao usufrutuário o direito de usar e gozar da coisa (inclusive de alugá-la e perceber seus frutos), abrangendo uma gama maior de faculdades. Já o direito real de habitação (art. 1.414 e 1.831 do CC/02) é mais restrito, limitado à finalidade de moradia pessoal do beneficiário e de sua família.
  • Abrangência: o usufruto pode recair sobre bens móveis e imóveis, e o usufrutuário pode inclusive alugá-lo. O direito de habitação, por sua vez, limita-se ao imóvel e à utilização para moradia própria.
  • Onerosidade: o usufruto pode ser constituído de forma onerosa ou gratuita. O direito real de habitação, por sua natureza protetiva, é sempre gratuito.
  • Inaplicabilidade quando o imóvel foi doado antes da união, com cláusula de usufruto: uma situação peculiar surge quando o falecido, antes do casamento ou união estável, recebeu o imóvel por doação, com cláusula de usufruto em favor do doador. Nesse caso, como o falecido não possuía a propriedade plena do bem (apenas a nua-propriedade), e o direito real de habitação recai sobre a propriedade do falecido, o direito do cônjuge/companheiro sobrevivente pode ser prejudicado ou até mesmo inviabilizado, a depender da interpretação do caso concreto e da prevalência do usufruto já instituído. Da mesma forma, se o falecido, antes do casamento ou união estável, doou o imóvel, permanecendo nele apenas pelo usufruto, como o bem não mais pertence ao seu patrimônio, não haveria o direito de habitação pelo cônjuge sobrevivente.

Impactos do direito real de habitação no inventário e partilha de bens

O direito real de habitação exerce um impacto significativo no processo de inventário e partilha de bens do falecido. Independentemente do regime de bens adotado pelo casal (comunhão parcial, comunhão universal, separação total ou participação final nos aquestos), e da concorrência ou não do cônjuge/companheiro sobrevivente com os herdeiros na herança (art. 1.829 do CC/02), o direito real de habitação existe de forma autônoma e prioritária.

Ou seja, mesmo que o cônjuge não seja herdeiro em determinada situação, ele ainda assim terá direito de habitação sobre o imóvel residencial. Esse direito, por ser um ônus real sobre o imóvel, limita a liberdade dos herdeiros em dispor do bem. O imóvel, embora integre o acervo hereditário e seja partilhado entre os herdeiros, estará gravado com o direito de habitação, o que impede sua venda ou alienação por parte dos herdeiros enquanto o direito persistir.

Imóvel com direito de habitação integra a partilha?

Sim, o imóvel gravado com o direito de habitação integra a partilha de bens do falecido. Ele será atribuído aos herdeiros de acordo com as regras de sucessão aplicáveis. No entanto, sua posse direta e uso permanecerão com o cônjuge/companheiro sobrevivente, em razão do direito de habitação.

As implicações para os herdeiros são claras: eles se tornam proprietários de um imóvel que não podem usufruir plenamente, nem dispor livremente, enquanto o direito de habitação estiver em vigor. Isso pode gerar conflitos e a necessidade de negociação entre as partes.

O direito real de habitação pode, inclusive, ser utilizado como uma estratégia negocial na sucessão. Em vez de uma disputa judicial prolongada, as partes podem acordar o reconhecimento do direito de habitação, buscando outras formas de compensação para os herdeiros ou, em alguns casos, até mesmo a compra da parte dos herdeiros pelo cônjuge/companheiro sobrevivente, caso haja interesse e condições financeiras.

Os herdeiros podem cobrar aluguel?

Não, os herdeiros não podem cobrar aluguel do cônjuge/companheiro sobrevivente que exerce o direito real de habitação. A gratuidade é uma característica essencial desse instituto. A lei visa a proteger o direito à moradia do beneficiário, e a cobrança de aluguel desvirtuaria essa finalidade.

É fundamental diferenciar a habitação gratuita garantida pelo direito real de habitação do uso precário do imóvel. No primeiro caso, a ocupação é legítima e protegida por lei. No segundo, a ocupação não tem amparo legal e pode gerar a obrigação de pagar aluguel.

Jurisprudência relevante

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado de forma consistente sobre o direito real de habitação, consolidando entendimentos e abordando nuances importantes:

  • REsp 1.757.984/DF: este julgado do STJ reafirmou a tese de que o direito real de habitação é estendido ao companheiro sobrevivente, ou seja, para a união estável.
  • REsp 1.846.167/DF: esse recurso tratou da impossibilidade de extinção do condomínio entre herdeiros e a alienação do bem imóvel enquanto durar o direito real de habitação, bem como definiu que o direito real de habitação tem caráter gratuito, razão pela qual os herdeiros não podem exigir remuneração do companheiro sobrevivente pelo uso do imóvel.
  • REsp 1.582.178/MG: neste precedente, o STJ analisou a questão da existência de bens no patrimônio da companheira sobrevivente, considerando-a irrelevante e, assim, mantido o direito real de habitação.
  • REsp 2.151.939/MG: neste caso, o STJ, em uma situação casuística, relativiza o direito real de habitação, pois ficou provado que não atendia à finalidade social que o instituto se propõe. No caso, a viúva recebe pensão substancial do autor da herança decorrente da conversão dos proventos de aposentadoria do de cujus, ao mesmo tempo em que os herdeiros não recebem qualquer valor a título de pensão e alugam outros bens para residirem, o que mitiga a necessidade de maior cautela em exclusivo benefício da consorte sobrevivente. Assim, foi relativizado o direito real de habitação.
  • REsp 1.315.606/SP: o STJ, neste caso, também consolidou o entendimento de que o direito real de habitação pode ser casuisticamente mitigado, quando o falecido houver doado o imóvel com cláusula de usufruto antes do casamento ou união estável. Como o imóvel não fazia parte mais do patrimônio do de cujus, e a doação não foi questionada, o direito de habitação pelo cônjuge sobrevivente deixa de existir.

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Conclusão

O direito real de habitação é um pilar fundamental na proteção do direito à moradia do cônjuge ou companheiro sobrevivente, atuando como um escudo social em um momento de fragilidade. Sua autonomia em relação às regras de concorrência sucessória e sua gratuidade reforçam seu caráter protetivo.

Compreender seus requisitos, suas limitações e as interpretações jurisprudenciais é essencial para advogados, herdeiros e, principalmente, para aqueles que se veem diante da necessidade de exercê-lo ou de lidar com seus efeitos. A correta aplicação desse instituto garante não apenas a segurança habitacional do supérstite, mas também a pacificação dos conflitos sucessórios, reafirmando o compromisso do ordenamento jurídico brasileiro com a dignidade da pessoa humana.

O direito real de habitação interfere diretamente na partilha de bens ao impor uma limitação de uso e disposição sobre o imóvel residencial, mesmo que este integre o acervo hereditário. Esse direito pode, inclusive, ser utilizado de forma estratégica nas negociações entre o cônjuge sobrevivente e os herdeiros: em determinadas situações, o reconhecimento consensual do direito de habitação pode evitar litígios e abrir caminho para soluções compensatórias, como a atribuição de outros bens aos herdeiros ou até a aquisição das cotas hereditárias pelo cônjuge.

Assim, o instituto também cumpre um papel prático de mediação e pacificação no processo sucessório. Contar com assessoria jurídica especializada é essencial para conduzir essas negociações com segurança e respaldo técnico, garantindo a proteção dos direitos envolvidos.

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Marcelo Camara - CRON
Marcelo Camara
Sócio | marcelo@cron.adv.br |  + posts

Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor de Direitos Reais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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