A neutralidade de rede e o zero-rating são temas centrais na regulação da internet, especialmente no contexto brasileiro.
O debate sobre estes dois temas é fundamental para garantir o caráter aberto e descentralizado da Internet, empoderando os usuários finais e preservando direitos fundamentais.
Enquanto a neutralidade de rede garante um tratamento igualitário de todos os dados que trafegam na internet, a estratégia comercial do zero-rating permite que certos conteúdos sejam acessados sem consumir o pacote de dados do usuário.
Neste artigo exploramos a suposta legalidade do zero-rating sob a perspectiva da neutralidade de rede, focando nas decisões judiciais e regulamentações recentes que impactam o acesso e a igualdade na internet.
Estrutura da Internet
Para entender os efeitos e riscos da estratégia comercial do zero-rating, adotada por algumas operadoras de telefonia, especialmente em planos de acesso móvel, é necessário relembrar a estrutura básica da Internet – incluindo as camadas de rede – e o conceito de neutralidade de rede.
A arquitetura original da Internet divide a rede em seis camadas:
- Camada física: refere-se aos hardwares que transmitem os dados, como cabos de rede, roteadores e torres de telefonia. É a base física da comunicação de dados.
- Camada de enlace: permite a conexão entre os hardwares da camada física e a rede, realizando a transferência de dados entre dispositivos na mesma rede.
- Camada de rede: através do IP (Internet Protocol), identifica os pacotes de dados de origem e de destino pela rede e singulariza os dispositivos conectados na Internet.
- Camada de transporte: fragmenta os dados originais em pacotes menores e permite a transmissão confiável de dados entre dispositivos pelo TCP (Transfer Control Protocol). As camadas de rede e transporte são complementares, daí o uso do termo “protocolo TCP/IP”.
- Camada de aplicações: fornece os protocolos e softwares necessários para que as aplicações se comuniquem pela rede.
- Camada de conteúdo: é o que é visível para os usuários.
A disposição original da Internet foi pensada para que o tráfego de dados nas camadas primárias, especialmente o protocolo TCP/IP, recebesse o mesmo tratamento. Isso significa que os provedores de conexão à Internet não deveriam dar tratamento diferenciado aos pacotes de dados transmitidos.
Neutralidade de Rede
A neutralidade de rede visa a evitar o tratamento discriminatório de pacotes de dados, garantindo que todos tenham acesso igual aos conteúdos disponíveis online. Com a neutralidade de rede, pretende-se que o tráfego de dados nas primeiras camadas receba o mesmo tratamento, independentemente de seu conteúdo, origem ou destino.
Legislação brasileira
Eventuais ofensas à neutralidade de rede podem violar o Marco Civil da Internet (MCI), o Decreto nº 8.771/2016 e, especialmente, o Código de Defesa do Consumidor.
O MCI possui a neutralidade de rede como um de seus pilares, buscando conciliar o desenvolvimento tecnológico e a livre iniciativa com a proteção dos direitos dos usuários.
Em seu artigo 9º, o MCI estabelece que os provedores de internet devem tratar todos os dados de maneira isonômica, preservando a liberdade de escolha do usuário e evitando práticas que possam prejudicar a concorrência e a inovação.
No entanto, essa norma foi criada em um período de entusiasmo em relação à Internet e, atualmente, apresenta várias falhas na proteção dos direitos no ambiente digital.
As críticas ao conceito de neutralidade de rede no MCI destacam sua imprecisão e a existência de situações em que é permitida a discriminação ou degradação do tráfego de dados. Além disso, a garantia da neutralidade de rede é limitada se for adotada apenas pelo Brasil, já que o tráfego de dados internacionais não estaria sob a mesma proteção.
A influência das grandes empresas de tecnologia e a sociedade, cada vez mais orientada por dados, fazem com que a neutralidade de rede frequentemente não seja respeitada. O conceito original da Internet, especialmente nas camadas de protocolo TCP/IP, é corrompido pelo chamado Capitalismo de Vigilância, em que provedores de conexão monitoram e discriminam os pacotes de dados dos consumidores para aumentar seus lucros.
Diferenciações no tratamento de pacotes de dados conforme seu tamanho, a exemplo da transmissão de vídeos em 4K comparados com e-mails simples, são justificáveis e razoáveis. Porém, a neutralidade de rede proíbe que aplicações equivalentes recebam tratamento diferenciado da infraestrutura da rede, prejudicando os consumidores desses serviços.
Violações à Neutralidade de Rede
Alguns exemplos de violação à neutralidade de rede incluem:
- traffic shaping, em que as operadoras ampliam a velocidade de seus pacotes de dados enquanto reduzem a de concorrentes; e
- zero-rating (ZR), em que as operadoras oferecem franquia de dados ilimitada ou bonificada para determinados aplicativos e serviços online.
Impactos do Zero-Rating
Embora o zero-rating possa parecer benéfico aos consumidores e promova a inclusão digital, ele apresenta riscos ocultos. A navegação ilimitada em certos aplicativos sem descontar da franquia de dados móveis limita a liberdade de escolha e expressão dos consumidores, que acabam utilizando apenas os aplicativos bonificados pelo zero-rating.
Além disso, o zero-rating pode ser acompanhado de técnicas de manipulação comportamental, haja vista o padrão obscuro (dark pattern) utilizado, aproveitando-se da vulnerabilidade do consumidor no ambiente digital. Essa prática diminui as fontes de informação, ferramentas de comunicação e interação social disponíveis para os consumidores.
Desinformação e manipulação de consumidores
A desinformação é um problema sério. Se o consumidor só tem acesso a um serviço de mensagens e recebe informações duvidosas, ele não consegue confirmar a veracidade em fontes confiáveis, perpetuando uma visão distorcida da realidade.
Embora o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas defenda que todos os dados na Internet devem ser tratados igualmente, isso muitas vezes não ocorre na prática. A adoção irrestrita do zero-rating contraria a neutralidade de rede. Ao tratar pacotes de dados equivalentes de forma diferente, o zero-rating impede que a Internet garanta o desenvolvimento econômico, social e o exercício de direitos como a liberdade de expressão e a igualdade.
O zero-rating seria uma forma de discriminação da rede justamente por propiciar um sistema de diferentes Internets a depender da franquia de dados contratada.
Impacto internacional
Além das normas internas brasileiras, o avanço interpretativo quanto às obrigações internacionais dos Estados em relação à jurisdição da internet podem exercer pressão para que decisões judiciais, regulações e atuações executivas se alinhem a padrões globais.
Embora não exista um tratado internacional ratificado pelo Brasil que regulamente de forma expressa e pormenorizada o uso da Internet, existem guiamentos de sistemas regionais, bem como jurisprudência de regimes autônomos que podem ser aplicados. O art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) garante o direito de buscar, receber e divulgar informações livremente, o que pode ser impactado por práticas como o zero-rating.
A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) enfatiza a importância de garantir igualdade de oportunidades para todas as pessoas acessarem e compartilharem informações, inclusive na Internet.
Uma das consequências possíveis, na web 4.0, é a expectativa de progressão do Direito Internacional Digital para que Estados possam também ser responsabilizados por atos ilícitos, tendo como parâmetro obrigações internacionais alargadas e consentâneas com suas atuações comissivas no ciberespaço.
A jurisprudência internacional, como a do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), mostra progressos na regulação de práticas como o zero-rating. Em 2020, o TJUE determinou que o zero-rating ofende o Regulamento 2015/2120 da União Europeia, que estabelece diretrizes para o acesso à Internet aberta.
A regulação do zero-rating exige uma abordagem global. Tomasevicius já defendia em 2016 a necessidade de uma Lei Uniforme ou Convenção Internacional sobre o Uso da Internet ou uma Declaração Universal dos Direitos dos Usuários da Internet.
Conclusão
A jurisdição da Internet requer iniciativas de regulação global, complementando ou suprindo governanças locais por uma governança interdependente. Decisões judiciais como as do TJUE podem ser utilizadas como parâmetro para suprir lacunas normativas.
A defesa dos neurodireitos, que protegeriam a liberdade cognitiva e a privacidade mental, também é importante para impedir o uso abusivo do zero-rating. Estes direitos já estão previstos na Constituição Chilena e há esforços para incluí-los no Código Civil Brasileiro.
A neutralidade de rede deve ser examinada a partir de interpretação sistemática que harmonize os direitos individuais e questões da ordem legal, econômica e social.
O MCI, como qualquer outra legislação local sobre a Internet, é instituto insuficiente para resolver a questão, haja vista sua inevitável limitação à jurisdição brasileira, sem efeitos transnacionais.
Portanto, é essencial regulamentar o zero-rating com a garantia da neutralidade de rede internacional, visando proteger os direitos dos usuários e promover uma Internet mais justa e acessível globalmente.
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Confira o artigo completo escrito por nosso sócio, Dierle Nunes, em conjunto com Lorena Bastianetto[1], Mathaus Miranda e Vittoria Anastasia[2], no portal Consultor Jurídico.
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[1] Sócia do Escritório Bastianetto Alessi Advogados, Doutora em Direito Processual pela PUC/MG, Professora da Escola Superior Dom Helder Câmara e da Pós-Graduação em Direito Internacional/CEDIN, Presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/MG, Coordenadora da Comissão de Estudos e Pareceres da ABEP.
[2] Pós-graduanda em Direito Internacional pelo CEDIN, pós-graduanda em Direito Tributário pela PUC Minas e Advogada.
Dierle Nunes
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (Itália); mestre em Direito pela PUC Minas e professor adjunto na UFMG e PUC Minas. Integrou a Comissão de Juristas que assessorou a elaboração do Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados (2015) e a Subcomissão de Direito Digital da Reforma do Código Civil (2024).
Mathaus Miranda Maciel
Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara.
Membro do Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia (DTec) da UFMG. Pós-graduando em Direito Privado, Tecnologia e Inovação pela EBRADI/SP. Foi membro do Grupo de iniciação Científica “Responsabilidade Civil: desafios e perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea” pela Escola Superior Dom Helder Câmara.